Paulo C. Sabroza
Vice-Diretor
Escola Nacional de Saúde Pública
Escola Nacional de Saúde Pública
É praticamente consensual que
existe uma crise no campo da saúde pública, alcançando a prestação de serviços,
o ensino e a produção acadêmica. Esta crise, cuja face atual se remonta à
década passada, teria origem na consciência acerca das limitações que colocaram
em dúvida a viabilidade dos modelos explicativos mais bem elaborados, que
entendemos sejam aqueles dos estados social-democratas ocidentais.
A primeira limitação seria
fundamentalmente econômica, centrada na inviabilidade do estado provedor, e em
última instância da sociedade, de suportar o aumento dos custos da atenção
médica. Sumetidos às pressões de demandas inesgotáveis por cuidados que exigem
recursos de alto nível tecnológico, promovidas pelos interesses de setores
industriais e de grupos médicos organizados a partir da lógica do lucro,
associados à ideologia da saúde como panacéia, estes sistemas teriam ficado
inviáveis, quando o setor público perdeu a capacidade de regulação. A segunda,
com implicações ainda mais sérias, decorreria da incapacidade deste tipo de
atendimento de necessidades individuais e coletivas resultar em um nível maior
de bem-estar e aumento da produtividade social.
Como alternativa, têm sido
propostos sistemas dirigidos à promoção da
saúde e não preferencialmente voltados ao atendimento das doenças. Na procura de projetos de uma
medicina social renovada, o Estado manteria suas funções de regulação e
financiamento, desenvolvendo ações em conjunto com organizações da sociedade
civil.
Formas distintas de organização
institucional, mudanças no padrão de consumo de bens e serviços, maior controle
das políticas públicas por parte dos usuários e, principalmente, a necessidade
de uma nova ética, com reafirmação de valores em relação à vida e à morte,
seriam componentes de uma outra utopia capaz de retirar a Saúde Pública do
impasse em que se encontra. Neste sentido, a atual crise da Saúde Pública não
se circunscreve a loci regionais
de produção de conhecimento e/ou práticas de intervenção em saúde, mas está
inscrita e delimitada dentro de uma crise global.
É surpreendente como que, há
décadas, prosseguimos falando de saúde como valor individual positivo, enquanto
a violência, a adição de jovens a drogas cada vez mais destrutivas e o
sofrimento decorrente da solidão disseminam-se rapidamente como resultado de
processos coletivos, sem que as sociedades sejam capazes de reconhecê-los
enquanto problemas de saúde. O retrocesso das condições de saúde traduz-se pela
humilhante persistência da fome, pela manutenção de níveis elevados de
mortalidade infantil, pelo aumento e disseminação de doenças previsíveis, pelo
abandono e prostituição de crianças e pelo genocídio de grupos étnicos. Grandes
fluxos migratórios favorecem a disseminação de agentes parasitários,
facilitando o aparecimento de "novas" epidemias e endemias, enquanto
a diminuição da capacidade de investimento e a desestruturaçã o das
comunidades tradicionais inviabilizaram a capacidade de resposta dos serviços
públicos de saúde, de saneamento e o incentivo à produção de alimentos.
O projeto de uma nova Saúde
Pública, dirigida a promover a saúde e não preferencialmente a cuidar da
doença, deverá então entender e trabalhar a questão de que os seres humanos não
têm apenas necessidades, mas também desejos e medos. Neste sentido, o
sofrimento precisa ser atendido, inclusive quando os recursos técnicos não são
mais capazes de promover a cura, problematizando assim as dimensões
contraditórias da relação indivíduo/coletivida de. A negação desta dimensão
constitui-se claramente numa limitante ao desenvolvimento de uma nova saúde
pública.
Por outro lado, os estados
democráticos, junto com as organizações da sociedade civil, terão que,
respeitando os direitos individuais, retomar a capacidade de intervir
estrategicamente sobre os determinantes coletivos da saúde, mantendo a
responsabilidade das pessoas frente aos processos de doença. Para tal, é
essencial que as questões da saúde pública passem, cada vez mais, a ser
debatidas nas propostas dos partidos políticos e outras instituições da
sociedade civil, obrigando àqueles envolvidos na produção e reprodução do
conhecimento a procurarem formas mais efetivas de comunicação e a
diversificarem o elenco daqueles com os quais precisam estabelecer alianças
capazes de viabilizar a construção do novo modelo.
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