quinta-feira, 12 de julho de 2012

A crise da saúde pública no Brasil

 Paulo C. Sabroza
Vice-Diretor
Escola Nacional de Saúde Pública

É praticamente consensual que existe uma crise no campo da saúde pública, alcançando a prestação de serviços, o ensino e a produção acadêmica. Esta crise, cuja face atual se remonta à década passada, teria origem na consciência acerca das limitações que colocaram em dúvida a viabilidade dos modelos explicativos mais bem elaborados, que entendemos sejam aqueles dos estados social-democratas ocidentais.

A primeira limitação seria fundamentalmente econômica, centrada na inviabilidade do estado provedor, e em última instância da sociedade, de suportar o aumento dos custos da atenção médica. Sumetidos às pressões de demandas inesgotáveis por cuidados que exigem recursos de alto nível tecnológico, promovidas pelos interesses de setores industriais e de grupos médicos organizados a partir da lógica do lucro, associados à ideologia da saúde como panacéia, estes sistemas teriam ficado inviáveis, quando o setor público perdeu a capacidade de regulação. A segunda, com implicações ainda mais sérias, decorreria da incapacidade deste tipo de atendimento de necessidades individuais e coletivas resultar em um nível maior de bem-estar e aumento da produtividade social.

Como alternativa, têm sido propostos sistemas dirigidos à promoção da saúde e não preferencialmente voltados ao atendimento das doenças. Na procura de projetos de uma medicina social renovada, o Estado manteria suas funções de regulação e financiamento, desenvolvendo ações em conjunto com organizações da sociedade civil.

Formas distintas de organização institucional, mudanças no padrão de consumo de bens e serviços, maior controle das políticas públicas por parte dos usuários e, principalmente, a necessidade de uma nova ética, com reafirmação de valores em relação à vida e à morte, seriam componentes de uma outra utopia capaz de retirar a Saúde Pública do impasse em que se encontra. Neste sentido, a atual crise da Saúde Pública não se circunscreve a loci regionais de produção de conhecimento e/ou práticas de intervenção em saúde, mas está inscrita e delimitada dentro de uma crise global.
É surpreendente como que, há décadas, prosseguimos falando de saúde como valor individual positivo, enquanto a violência, a adição de jovens a drogas cada vez mais destrutivas e o sofrimento decorrente da solidão disseminam-se rapidamente como resultado de processos coletivos, sem que as sociedades sejam capazes de reconhecê-los enquanto problemas de saúde. O retrocesso das condições de saúde traduz-se pela humilhante persistência da fome, pela manutenção de níveis elevados de mortalidade infantil, pelo aumento e disseminação de doenças previsíveis, pelo abandono e prostituição de crianças e pelo genocídio de grupos étnicos. Grandes fluxos migratórios favorecem a disseminação de agentes parasitários, facilitando o aparecimento de "novas" epidemias e endemias, enquanto a diminuição da capacidade de investimento e a desestruturação das comunidades tradicionais inviabilizaram a capacidade de resposta dos serviços públicos de saúde, de saneamento e o incentivo à produção de alimentos.

O projeto de uma nova Saúde Pública, dirigida a promover a saúde e não preferencialmente a cuidar da doença, deverá então entender e trabalhar a questão de que os seres humanos não têm apenas necessidades, mas também desejos e medos. Neste sentido, o sofrimento precisa ser atendido, inclusive quando os recursos técnicos não são mais capazes de promover a cura, problematizando assim as dimensões contraditórias da relação indivíduo/coletividade. A negação desta dimensão constitui-se claramente numa limitante ao desenvolvimento de uma nova saúde pública.

Por outro lado, os estados democráticos, junto com as organizações da sociedade civil, terão que, respeitando os direitos individuais, retomar a capacidade de intervir estrategicamente sobre os determinantes coletivos da saúde, mantendo a responsabilidade das pessoas frente aos processos de doença. Para tal, é essencial que as questões da saúde pública passem, cada vez mais, a ser debatidas nas propostas dos partidos políticos e outras instituições da sociedade civil, obrigando àqueles envolvidos na produção e reprodução do conhecimento a procurarem formas mais efetivas de comunicação e a diversificarem o elenco daqueles com os quais precisam estabelecer alianças capazes de viabilizar a construção do novo modelo.
 
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